O Visitante


 

Relato do momento em que o hermético recebeu, sem desejá-lo, a visita da hermenêutica.
Um dia aparentemente comum, em que a quietude do símbolo foi interpelada por um olhar distinto.


O velho e enorme gigante espreguiçou-se sob o campanário.

Suado e remelento, mas com o mesmo sorriso plácido e o mesmo olhar agudo e inquisitivo de sempre, percorreu o cenário da praça que se abria à sua frente.

Era como se cada manhã o surpreendesse do mesmo modo: pesado pela noite, mas alerta; atento ao menor movimento que perturbasse o território que considerava seu desde tempos remotos.

Os sinos tocaram ritmicamente e ninguém apareceu na praça.
Os pássaros se agitaram nos galhos e disputaram com seus trinados o ritmo metálico.
Estava tudo em ordem.

Levantou-se lentamente, curvado pelo peso do próprio corpo informe, e dirigiu-se ao caixa de correio, como fazia todos os dias.
Certificar-se de que nada havia mudado era parte essencial de sua rotina de guardião.
Era praticamente o fundamento de seu ofício diário.

A última mensagem de verdadeiro interesse havia chegado já muito além do tempo habitual para esse tipo de coisa: uma notificação solene que certificava seu papel de vigilante e vigia, administrador da praça e dono do campanário.

Era um documento antigo, nascido numa época em que ainda se enviavam confirmações claras, quando certos despachos falavam com voz direta e firme.
Diziam que tais confirmações costumavam ser revistas a cada certo ciclo, cinco voltas completas do calendário marcado pela torre.
Depois desse lapso, um novo olhar era esperado, quase parte da ordem natural.

Mas aquele tempo ficara para trás há muito.
O ciclo se cumprira — e mais um também.

E, no entanto, nenhuma mensagem voltara a aparecer, nenhum novo sinal chegara, nenhuma sombra indicava que algo distinto estivesse prestes a se pronunciar desde além da praça.

O gigante sabia disso.
E, ainda assim, continuava agarrado àquele papel amarelado como se ainda estivesse vigente, como se o tempo não desgastasse as antigas licenças.

Em sua lógica, a ausência de notícias era continuidade, e o silêncio, confirmação.
E assim preservava sua independência.
E assim justificava seus atos de comendador da justiça.

O caixa de correio estava vazio, como de costume, também naquela manhã.

Respirou — ou suspirou — como um fole velho que se esvazia.
Era o som característico de sua satisfação.
O corpo pesava e as articulações doíam.

De repente, os pássaros cessaram o alvoroço, e um silêncio incomum invadiu seus ouvidos.

Tão rápido quanto pôde, voltou ao seu lugar sob o campanário e tornou a sentar-se, em atitude régia, aguçando o olhar em direção à praça deserta.

Um cão.
Um simples cão caminhava distraído e meio perdido pelo meio de sua praça.
Praça que já não estava deserta.

Não pertencia à população habitual do vazio.
E caminhava.
Quatro patas em terra.
Nada de asas batendo ao vento, nem trinados estridentes.

Patas em terra eram um alerta.

Esquadrinhou o cão com agudeza, aplicando décadas e décadas de experiência no escrutínio.
Deveria chegar a um diagnóstico… ou talvez não.
Talvez não fosse necessário nenhum parecer urgente.
Talvez estivesse apenas cruzando a praça, talvez andasse tão perdido que acreditasse haver ali algo além de asas movendo o ar e trinados respondendo aos sinos.

Mas nunca se sabe.
Sua função era fazê-lo compreender que não havia mais nada ali.

O cão cruzou a praça sem olhar para ele, andando distraidamente, voltando a atenção ora para um lado, ora para outro e, vez ou outra, farejando o ar.
Nunca os pássaros estiveram tão silenciosos.

Mas era só um cão, disse a si mesmo.
De vez em quando aparecia algum esquilo, alguma lagartixa, algum furão sem espaço lá fora procurando abrigo entre as árvores.
De vez em quando os pássaros anunciavam, com seu silêncio, algum visitante inesperado.
Mas eram apenas isso: visitantes que, cansados do acolhimento ralo daquele silêncio, logo seguiam caminho.

Tranquilizou-se com o velho auto-discurso de sempre, dizendo para si mesmo:

—Sou enorme e ninguém conhece meu cansaço. Sou legítimo e tenho uma história genuína. Todos sabem que sou o último monarca de uma estirpe já extinta. Ninguém ousaria atacar-me sem correr o risco de revelar sua própria ignomínia. Ninguém ousaria olhar-me nos olhos sem ver ali seu próprio fracasso, sua inutilidade, sua derrota final. Estou além da justiça: eu sou a justiça. Estou além do juiz: eu sou meu próprio júri. E jamais deixo minha praça, meu campanário e meu caixa de correio. A quem temeria?

O cão então parou diante dele, ergueu os olhos e cravou seu olhar agudo e desperto no olhar exausto do gigante.

E então ele soube.
Não era correio.
Não desta vez.

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