Me pergunto até onde o
silêncio é pai da injustiça e irmão da covardia.
O silêncio costuma ser apresentado como uma virtude serena, um bálsamo para
evitar contendas, um dom dos prudentes, um altar onde se oferece a paz. Mas
será realmente assim em toda circunstância?
Ou será que, em certas ocasiões, o silêncio se torna o berço onde crescem as
sombras, o ninho onde se incubam as injustiças e o sudário que encobre a
verdade?
O
silêncio tem dois rostos. Um é santo: é o silêncio contemplativo, o silêncio
que escuta, o silêncio que cura, o silêncio que evita a ferida desnecessária.
Esse silêncio é oração, é sabedoria, é a respiração profunda da alma que se
recolhe para agir com clareza. Esse silêncio é filho legítimo da prudência.
Mas existe outro silêncio —o que inquieta, o que dói, o que trai—.
Esse silêncio nasce do medo: medo do julgamento, medo de perder privilégios,
medo de carregar a cruz da testemunha. Esse silêncio é uma aliança tácita com o
mal, ainda que quem o guarda não o confesse nem o reconheça. É o silêncio de
quem vê e não denuncia, de quem sabe e não adverte, de quem compreende e não
intervém. Esse silêncio não é neutralidade: é cumplicidade passiva.
Por isso me atrevo a pensar que, em certos momentos da história humana e
da alma humana, o silêncio pode ser pai da injustiça e irmão da covardia.
A tradição moral, especialmente em ambientes religiosos ou
disciplinados, nos ensinou que guardar silêncio é nobre e superior a responder.
Eleva-se o silêncio como martírio de paz, quase como uma virtude que garante
santidade por si mesma. Mas o que acontece quando essa pedagogia do silêncio
serviu mais para paralisar do que para purificar? O que acontece quando a
prudência se transforma em desculpa, e a paz em anestesia?
Basta olhar para o Evangelho.
Jesus guardou silêncio, sim, mas não diante de qualquer pergunta nem diante de
qualquer injustiça.
Guardou silêncio diante de Pilatos quando foi interpelado sobre a verdade, não
porque a desconhecesse, mas porque a verdade nunca se explica onde deixou de
ser amada; e também porque a verdade é, para cada pessoa, a situação inexorável
em que ela se encontra diante de suas próprias circunstâncias, algo que nenhuma
palavra pode substituir ou maquiar. Mas antes desse silêncio, Ele falou,
denunciou, iluminou, corrigiu, profetizou, expulsou, confrontou, chorou e
gritou.
A verdade estava em Pilatos, enquanto governador da Judeia; estava na
tensão daquele povo dividido em intenções lá fora; estava nos desígnios
inexoráveis da existência redentora de Jesus. A verdade estava no temor e na
coragem, na razão e nas emoções: porque a verdade não era uma ideia a ser
definida, mas a condição real em que cada um se encontrava diante daquele
acontecimento.
Jesus calou, porque que palavra poderia traduzir a verdade quando a
própria verdade envolve o nosso fôlego? Ali estava Ela, erguida entre Pilatos e
Jesus, mais próxima que qualquer definição, mais luminosa que qualquer
explicação.
Jesus não abençoou a injustiça com silêncio. Não abençoou a mentira com
diplomacia. Não abençoou o abuso com prudência.
Seu silêncio não foi evasão: foi revelação.
Talvez o desafio não seja calar nem romper o silêncio, mas discerni-lo.
Porque há silêncios que vêm de Deus,
e silêncios que ofendem a Deus.
E este é o dilema diante do qual hoje me encontro: discernir o meu
silêncio, porque o meu silêncio pode resultar na aniquilação das obras de
muitos, ou pode resultar em ferida de escândalo no momento menos adequado.
E recorrer a quem, senão a Deus, para obter esclarecimento?
E onde está o Senhor, senão em sua Palavra?
Porque chega o momento em que a nossa razão — razão do discernimento humano —
já não é confiável diante das emoções que imperam.
Mas somos Igreja… e para onde vamos com esta verdade que pesa?
Diante de quem podemos romper o silêncio sem colocar em risco aquilo que ainda
pode ser salvo?
Porque não se trata apenas de expor a verdade, mas também de que exista
alguém capaz de escutá-la.
Quem está verdadeiramente disposto a ouvir uma verdade que incomoda, a discerni-la
sem medo, a deixar-se interpelar por ela?
Quem está livre de compromissos, expectativas ou débitos que possam turvar essa
escuta?
Quem pode receber uma verdade sem senti-la como ameaça, mas como chamado à
conversão e ao cuidado?
E quem, finalmente, está disposto a colocar-se de pé diante do seu próprio
Pilatos e guardar silêncio como Jesus, deixando que a verdade se manifeste por
si mesma, sem defesa nem explicação, apenas pela força de sua presença?
Eu não conheço alguém assim dentro de nossas fileiras.
Talvez tenha chegado o tempo de voltar aos caminhos empoeirados por onde o
Senhor caminhou, porque ali a verdade se revelava sem resguardos nem
estratégias, simplesmente na intempérie de Deus. Não faz sentido continuar
fechados em um recinto, com medo, esperando que chegue Tomé para crer somente
quando puder tocar as chagas. A fé não nasce do enclausuramento nem da cautela
obsessiva, mas do risco de sair, de expor-se, de confiar que o Ressuscitado se
deixa ver no caminho, não na fortaleza do medo.
De fato, Ele já se manifestou no caminho empoeirado; aproximou-se
daqueles que caminhavam desorientados, entrou com eles na hospedaria e
sentou-se à mesa com aqueles que, mesmo sem reconhecê-lo, o acolheram sem
hesitar.
E foi ali, no caminho de Emaús — e não em um recinto fechado — que a verdade se
deixou ver e o coração voltou a arder.
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