Quando Um Só Acorda, Todos Se Movem

 


"A solidão é uma ficção inventada pelo ego; a unidade é o que somos antes de qualquer escolha."


E se, como no passado, o remédio fosse marchar lado a lado e no mesmo passo?
E se as forças individuais —tão fracas e impotentes quando isoladas— se condensassem na forma de uma posição e de uma ação coletivas?
Poderíamos, juntos, alcançar aquilo que nenhum homem ou mulher sonharia conquistar sozinho? Talvez...

O problema, porém, é que essa convergência e essa condensação de preocupações individuais em interesses comuns —e depois em ação conjunta— constituem uma tarefa titânica, pois os problemas mais comuns dos ‘indivíduos-por-destino’ não são aditivos.
Eles não se deixam somar numa ‘causa comum’.
Podem ser reunidos, mas não se solidificam.”
— diz Zygmunt Bauman em Modernidade Líquida — e isso me leva imediatamente a pensar em situações concretas e cotidianas.

Leva-me, de maneira inexorável, à ideia de que não haveria destino como tal se não existisse uma índole humana que o aceita sem resistência. Neste tempo e em todos os tempos.
Quando um único ser humano desperta e resiste à índole que o governa, o destino torna-se maleável e as massas passam de ser seguidas a ser seguidoras.

Mas talvez a maior ironia da condição humana seja esta: o único destino realmente comum —a natureza da própria existência— é justamente aquilo que menos reconhecemos como compartilhado.
Cada um olha seus próprios medos, suas próprias dores, seus próprios limites como se fossem peças únicas, irrepetíveis, intransferíveis.
E sob essa ilusão, o ser humano perde a noção de uma inteligência prática comum: a de que nenhum problema humano é estritamente individual e de que quase nenhum pode ser resolvido na solidão.

Ainda assim, persistimos nessa ficção de exclusividade —como se nosso sofrimento fosse um privilégio ou uma maldição personalizada— e assim nos condenamos a acreditar que, se não conseguimos resolver sozinhos o que nos aflige, então não há solução.

A verdade, porém, é exatamente o contrário: as soluções nascem quando deixamos de nos olhar como exceções e começamos a nos reconhecer como partes de uma mesma trama de existência, onde aquilo que parece destino pessoal não é senão o reflexo repetido de uma condição universal.

E quando penso nessa ficção humana da exclusividade —essa convicção íntima de que nossas dores são intransferíveis e nossas lutas únicas— volto inevitavelmente a Jesus.
Não ao Jesus domesticado por séculos de catecismos simplificados, mas ao Jesus vivo, direto, incômodo, que caminhava entre as pessoas com uma clareza que ainda hoje nos desarma.

Porque, no fundo, o que fazia Ele senão desmontar, uma e outra vez, a ilusão de que cada um era uma ilha?

O paralítico acreditava que sua desgraça era incomparável; a mulher encurvada pensava que sua miséria lhe pertencia exclusivamente; o publicano supunha que sua culpa o separava do resto do mundo; o leproso estava certo de que sua exclusão era uma sentença pessoal e irrepetível. E, no entanto, Jesus via em todos eles o mesmo tecido humano, a mesma vibração de necessidade, medo, esperança e fragilidade. Ele via o comum onde cada um, via o único.

Por isso seus gestos eram tão desestabilizadores: não respondiam ao problema individual como se fosse um caso isolado, mas revelavam a natureza compartilhada da existência.

Quando Jesus tocava o leproso, não curava apenas a doença de um homem; desmontava a estrutura mental de um povo que acreditava que a desgraça do outro nada tinha a ver com a própria.
Quando perdoava o adúltero, mostrava que a culpa humana não é um fenômeno particular, mas uma condição transversal que ninguém evita, por mais que disfarce.
Quando chorava diante do túmulo de Lázaro, lembrava que a dor não é patrimônio de uma família, mas um eco profundo que pertence a toda a humanidade.

Jesus agia assim porque entendia o que ainda hoje relutamos em admitir: que o destino humano não é privado, mas compartilhado, e que toda ação que rompe a solidão interior de um indivíduo rompe, ao mesmo tempo, a ficção social da exclusividade.

Ele sabia que um único ser humano desperto —que se recusa a aceitar seu destino como uma jaula inevitável— pode alterar o movimento de todos os demais.
E por isso sempre começava por um: um que se atreve a ver além de si mesmo; um que reconhece, em sua ferida, a ferida do mundo; um que se deixa tocar o suficiente para que o destino, por um instante, deixe de ser destino e se torne possibilidade.

Bauman afirma que as preocupações individuais não se solidificam numa causa comum porque os seres humanos já não compartilham uma intuição prática do coletivo: veem-se a si mesmos como fragmentos desconexos.
Jesus, séculos antes de qualquer sociologia moderna, enfrentou esse mesmo fenômeno —não descrito em linguagem acadêmica, mas vivido em carne humana— e o desmontou desde dentro.

De certo modo, Jesus percebeu antes de todos que a maior catástrofe espiritual do ser humano é a ficção de uma unicidade absolutamente isolada. Cada pessoa se apega à própria ferida como privilégio, ao próprio sofrimento como se fosse um título exclusivo, à própria angústia como se ninguém mais pudesse compreendê-la. Esse enclausuramento subjetivo é exatamente o que impede que qualquer força individual se transforme em força comum.

E aqui aparece Jesus, não como teórico, mas como cirurgião da consciência humana.

Jesus não buscava somar indivíduos, mas revelar a unidade que já existe sob a ficção da separação. A sociologia contemporânea descreve isso como a impossibilidade moderna de “solidificar-se” numa causa comum. Jesus descreveu com uma frase que atravessa os séculos e desarma qualquer análise: «Que todos sejam um».

Mas essa unidade não é poética, nem simbólica, nem sentimental.
É uma unidade ontológica, anterior à história, anterior às culturas, anterior até à consciência que temos de nós mesmos. É a unidade da existência compartilhada —a unidade que ignoramos para refugiar a mente na ilusão de sermos casos especiais.

Bauman observa que as preocupações individuais podem ser reunidas, mas não se misturam, não se integram, não se solidificam. Jesus sabia por quê: porque as pessoas não despertam para sua verdadeira identidade, que não é a particularidade, mas a pertença.
Não se trata de “somar indivíduos”, mas de despertar a consciência de que não somos átomos soltos, mas células de um mesmo corpo.

Por isso Jesus não organizou massas. Não criou um movimento político. Não estruturou uma reforma social. Nem sequer buscou seguidores no sentido organizacional.

Jesus fez algo infinitamente mais subversivo: rompeu a ficção do indivíduo isolado, um por um.
E ao romper essa ficção, deixou entrever que a força coletiva não nasce do agregado, mas do reconhecimento mútuo do que é compartilhado.

No fundo, Jesus dizia a mesma coisa que Bauman denuncia do outro lado da história:
sem consciência de unidade, as forças humanas são incapazes de se solidificar. E com consciência de unidade, a força é tão natural quanto respirar.

Daí que a oração final de Jesus, antes de entregar a própria vida, não foi por milagres, nem por poder, nem por sucesso, mas pelo único pedido que realmente pode salvar o mundo: “Que todos sejam um, como Tu e Eu somos um.”

Isso não é um desejo religioso. É um diagnóstico antropológico. É um mapa da realidade profunda do ser humano, que apenas espera ser reconhecida. E é também a resposta à crise contemporânea que Bauman expõe: as forças humanas não se solidificam porque os seres humanos esqueceram que já são um.

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