Ícone não é moda. É memória eclesial
O ícone não nasce da imaginação.
Não é estética. É memória. É Tradição que não se inventa.
Pensei muito antes de decidir escrever este texto. Não é meu interesse —
nem minha intenção — que o que exponho aqui se transforme em matéria para
debates ou contestações críticas sobre o trabalho ou o pensamento de ninguém. O
único motivo que me move é partilhar alguns pontos fundamentais sobre os ícones
e a iconografia.
O que me decidiu, finalmente, foi uma convicção
simples e incômoda: no mundo moderno, tudo parece poder ser reinterpretado.
Mas, na arte sagrada, nem tudo pode ser reinventado. O ícone não nasce da
imaginação do artista, mas da memória viva da Igreja. É isso que o distingue
radicalmente da arte secular e da expressão individual. O ícone não é uma
pintura religiosa: é teologia em cores. Cada linha, cada tom, cada rosto
pertencem a uma linguagem recebida, na qual o visível se torna testemunho do
invisível.
Quando, então, os ícones se tornaram tão
populares? Em que momento passaram a circular como “moda”? Pode-se dizer que
isso ocorreu quando deixaram de ser compreendidos como oração e passaram a ser
vistos como estética espiritual. Aquilo que, para a Igreja, é linguagem sagrada,
no mundo contemporâneo transformou-se em símbolo de calma, harmonia e beleza
interior. Essa confusão — entre arte sagrada e arte espiritualizada — está na
raiz da banalização que hoje se observa.
Embora os ícones orientais fossem conhecidos no
Ocidente desde a Idade Média, sobretudo por comerciantes venezianos e
peregrinos à Terra Santa, sua popularização moderna é relativamente recente.
Ela se intensifica entre o final do século XIX e a segunda metade do século XX,
em um contexto marcado pelo esvaziamento espiritual da arte contemporânea, pela
saturação visual do mundo moderno e pela busca ocidental de uma forma visível
de transcendência que dispense discursos. O ícone, com sua sobriedade, seu
frontalidade e seu silêncio, passou a oferecer aquilo que o olhar moderno já
não encontrava: ordem, sacralidade, repouso. Ao mesmo tempo, foi sendo
progressivamente deslocado de seu contexto litúrgico e eclesial, tornando-se
objeto estético, peça de coleção, mercadoria espiritual.
O redescobrimento ocidental da arte bizantina e
iconográfica nasceu em ambientes acadêmicos e arqueológicos, mas encontrou na
Rússia um renascimento espiritual decisivo, com pensadores como Pável Florênski
e a tradição que culmina em Andréi Rublev, para quem o ícone é teologia
visível. O colecionismo de ícones antigos, o fascínio europeu pelo chamado
“misticismo oriental”, os movimentos simbolistas e a emigração de monges,
artistas e intelectuais ortodoxos para o Ocidente contribuíram para a difusão
dessa linguagem, agora traduzida à sensibilidade moderna. Oficinas e escolas se
multiplicaram, e o ícone passou a ser apresentado como “janela do Reino” a um
mundo que já não sabia como nomear o transcendente.
Esse fenômeno alcançou também círculos
católicos mais cultos e, em menor escala, a arte litúrgica romana, sobretudo
após o Concílio Vaticano II, quando se buscou uma expressão menos barroca e
mais sóbria. Mais tarde, entre as décadas de 1980 e 2000, o turismo religioso,
as galerias de arte oriental e as publicações populares sobre “o simbolismo dos
ícones” difundiram cópias em massa e cursos desvinculados da vida eclesial. Nos
anos seguintes, a iconografia entrou no circuito da chamada “espiritualidade
universal”, misturada a linguagens terapêuticas ou a uma estética vagamente
mística. Na era digital, os ícones multiplicaram-se como elementos decorativos,
identitários ou de consumo espiritual rápido, muitas vezes completamente
desligados de seu fundamento teológico.
O tema dos ícones é vasto demais para ser
esgotado aqui. Mas há algo que não pode ser esquecido. O ícone não nasce da
liberdade criativa individual, mas da fidelidade a uma verdade recebida. Desde
os primeiros séculos, a Igreja estabeleceu critérios para proteger aquilo que o
ícone confessa. No chamado Concílio Trulano, realizado em Constantinopla no ano
692, determinou-se que Cristo não fosse mais representado como cordeiro
simbólico, mas com seu rosto humano, porque o ícone proclama que Deus se fez
carne. No II Concílio de Niceia, em 787, afirmou-se que os ícones podem ser
venerados, não adorados, e que a honra dada à imagem passa àquele que ela
representa. Essas normas não empobrecem a arte; garantem sua verdade. Elas
asseguram que o fiel, ao olhar um ícone, não encontre uma fantasia pessoal, mas
uma janela segura para o eterno.
Com o passar dos séculos, diversas escolas desenvolveram
estilos próprios — bizantina, grega, eslava, árabe, copta — sem jamais perder o
mesmo coração: sobriedade, silêncio interior, fidelidade à mensagem e uma
beleza que conduz à oração. Mesmo quando, no Ocidente, surgiram representações
particulares do Pai ou do Espírito Santo, o iconógrafo autêntico soube manter o
respeito pela invisibilidade do mistério, interpretando com reverência, nunca
ilustrando de modo literal. A arte sagrada não argumenta: ela confessa.
Por isso, antes de escrever um ícone, o
iconógrafo reza. Seu ateliê não é um estúdio comum, mas um pequeno templo. Cada
pigmento, cada dourado, cada olhar nasce do silêncio, do jejum e da obediência.
Como dizia São João Damasceno, não se adora a matéria, mas o Criador da
matéria, que por meio dela se dignou habitar entre nós. O ícone não busca
emocionar; busca transfigurar. É a beleza daquilo que já foi redimido. E quem o
escreve, o faz em nome da Igreja, não em nome de si mesmo.
Num tempo em que tantos improvisam, voltar às
leis do ícone não é rigidez. É fidelidade. Porque a Tradição não aprisiona: ela
protege o mistério.

Irmã Makrina, muito necessário pelo esclarecimento, o seu texto. Eu mesma, sou uma leiga na arte sacra e na relação entre inspiração (divina), criação (artística) e contemplação (quem aprecia).
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