Cristo: A bússola perdida (parte I)



Não é problema que cerceie a minha realidade cotidiana, mas é um tema que bate à minha porta todos os dias. Ali tomo consciência da responsabilidade de ser católica, além de cristã. Por isso entendo, indefectivelmente, que amadurecer é assumir, ainda que a necessidade não exija. E me vejo obrigada a perguntar qual é a minha postura para além do convencional.
Porque não é problema oriental, mas é problema de todos desde o momento em que não há códigos, nem horários, nem métodos para abrir e fechar portas.

Mas há coisas que sei com certeza e sem sombra de dúvida. Não quero uma Igreja acorrentada a um código, como se cumprir normas fosse suficiente para respirar o Evangelho. Mas também não quero uma Igreja que vibre ao som de baterias eufóricas para aclamar discursos improvisados sobre anjos e asas.
Não quero uma Igreja que receba o caminhante ferido falando com ele em chaves de pecados e purezas. Mas também não aquela Igreja que tolera o olhar inquisitivo do ministro da Eucaristia que carrega a chave do sacrário no bolso. Todos deveríamos saber que não há autoridade sem sacrifício. A sacralidade não se improvisa: sustenta-se com a vida inteira, não com turnos alternados de fim de semana, e tampouco se finge.
Quem carrega sobre si a responsabilidade de um tabernáculo deve ter, já, a alma crucificada.

Não quero inspeção de olhos seculares nos claustros, mas tampouco conventos blindados que não recebam aquele que os sustenta silenciosamente com seu esforço diário. Cada um no seu munus, cada qual no seu papel, mas com seus direitos também, sem esquecer nem por um instante que são as obrigações aquelas que limitam.

Quero uma Igreja com portas, não com esconderijos nos cantos. Com participação, sim, mas não com substituições. Porque ser católico —além de cristão— é amadurecer longe dos extremos: nem código frio, nem espetáculo sem alma. Nem moralidades de claros-escuros, mas também…

Porque Jesus não veio domesticar a vida por trás de regulamentos, nem abençoar cenários triviais de devoções barulhentas. Jesus veio tocar o que estava morto, acender o que estava frio, confrontar o que estava cômodo.
As multidões não seguiam Jesus por um manual de normas, mas porque sua presença devolvia a dignidade. Ele não carregava chaves de sacrários: era Ele mesmo o Sacrário aberto.
Não pregava para agradar, nem se cercava de aplausos: aproximava-se do enfermo, do sujo, do rejeitado. E quando ensinava, fazia-o com voz de autoridade, sem necessidade de humilhar, gritar ou prometer milagres à la carte.

Por isso não quero uma Igreja que substitua o silêncio contemplativo pela agenda do ativismo, nem uma Igreja que confunda pureza com medo. Quero uma Igreja onde o pão seja pão para o faminto e mistério para o adorador. Onde o sacerdote não aja como dono de Deus, nem o fiel como turista do sagrado.

Porque Jesus… ficava. Não passava de largo. Ele chegava e permanecia no coração de quem o escutava.

Porque Jesus… fica. E essa é a nossa bússola. Não devemos perdê-la, porque sem ela todo o resto se converte em rito sem alma ou espetáculo sem raiz.
Não devemos perder o caminho que Ele nos aponta, nem afrouxar o passo para não perder a sua sombra. Mas também não nos desgastar até perder as nossas sandálias na corrida, como se chegar primeiro fosse mais importante que chegar com Ele.
Porque Cristo não corre na frente para que o admiremos de longe, nem fica atrás para que o esperemos como um peso. Ele caminha simplesmente, mas seu passo é firme, constante e vivo. O Evangelho nunca foi um arranque de entusiasmo nem uma pausa complacente: é uma marcha, uma travessia, um dar-se conta a cada passo.

Por isso, não quero uma Igreja cansada de caminhar nem embriagada de correr. Quero uma Igreja que saiba avançar com Cristo: sem fanatismos que amputam, sem laxidades que anestesiam.
Uma Igreja onde a fé não seja um regulamento nem um carnaval, mas uma resposta: esse sim que atravessa a noite, mesmo quando dói.
Porque Jesus é bússola, mas também é destino. É caminho, mas também é mesa preparada. É sombra que guia e luz que revela.

Quem caminha com Ele não precisa levantar bandeiras para sentir-se escolhido, nem esconder-se por trás de leis para sentir-se puro. Quem caminha com Ele sabe que a santidade se cozinha em fogo lento, que o amor exige custo, que a verdade reclama coragem.
Isso é amadurecer: não perdê-Lo, nem perder-se a si mesmo tentando provar o que Ele nunca pediu que lhe provassem.

Porque no fim, a única medida válida é esta: eu o segui? eu amei como Ele? eu permaneci?
Todo o restante —ritos, estruturas, discursos eclesiais, sensibilidades litúrgicas— pode ser útil ou pode ser ruído.
Mas se a bússola não aponta para o Cristo vivo, o templo vira museu e os ritos viram teatro.

Porque a maturidade cristã é aprender a não confundir nem substituir Cristo pelo cenário sagrado. E é aqui que nasce o cansaço: essa guerra de facções dentro da Igreja  que, de tanto ruído interno, já nem se escuta, nem se vê, nem se percebe.
Um combate onde ninguém vence e todos perdem, porque a vitória nunca foi nem será sobre um irmão, mas sobre si mesmo.

Tornaram-se especialistas em bandeiras litúrgicas e dialetos doutrinais; colecionadores de etiquetas: “tradicional”, “progressista”, “carismático”, “conservador”, “pós-conciliar”. Como se o Evangelho fosse uma fronteira que precisasse de alfândega.
Discute-se quem tem a chave mais legítima, a rúbrica mais antiga, a música mais pura, a batina mais longa, o aplauso mais forte. E enquanto isso, Cristo continua à porta, esperando que lhe abram por dentro.
Essa guerra fratricida transformou o templo em tribunal e o sacrário em troféu. Cada grupo acusa o outro de trair a fé, mas nenhum se atreve a ajoelhar-se diante da pergunta essencial:
Que parte de Cristo perdi para defender tanto o meu próprio Cristo?

Nem código frio, nem espetáculo sem alma —já disse—, mas também não essa maquinaria interminável de bandos que lançam anátemas cotidianos. Porque assim não se ouve Jesus, assim não se reconhece, assim não se respira.
A Igreja deixou de falar quando começou a gritar. E deixou de ver quando começou a vigiar. E deixou de perceber-se quando se dedicou a dividir.

Cristo não é um argumento, é um rosto. Não é uma facção, é um caminho. Não é uma consigna, é uma entrega.
Quem ama sua facção mais do que a Cristo já perdeu a bússola, e quem defende seu estilo litúrgico como se fosse um credo já esqueceu o mais simples: ninguém se salva por pertencer a um grupo, mas por pertencer Àquele que morreu por todos.

Não quero uma Igreja que soe como um congresso de paixões enfrentadas. Quero uma Igreja que escute seu próprio pulso: a respiração do Evangelho. Porque no silêncio humilde reconhece-se o passo de Jesus, e no ruído dos bandos reconhecem-se apenas os egos feridos.
Porque se cada um empunha sua cruz como lança para ferir o próximo, essa cruz deixa de salvar e começa a dividir. E uma cruz que divide, já não é a de Cristo.

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