E agora, devo assinalar —como no começo— que não é a minha realidade cotidiana, porque as realidades da Igreja oriental são outra história, são outras dores e outras urgências.
Ali não existem facções com cartazes doutrinais nem guerras de microfones para ver quem grita o dogma com mais força. O combate é outro, e mais silencioso. É o de não deixar evaporar aquilo que não se improvisa: a verdadeira Tradição.
Creio que a urgência mais importante agora é preparar-nos conscienciosamente, conscientemente, dolorosamente e sacrificialmente para não deixar perder essa tradição pura e diáfana que vem através de dois milênios para nos resgatar a todos.
Porque o que nos foi entregue não é um museu, nem uma coleção de gestos bonitos para dias solenes, nem um teatro de ornamentos brilhantes. É herança viva, memória respirada, teologia encarnada.
A tradição oriental não precisa inventar inimigos para sentir-se fiel. Seu perigo é mais discreto: a erosão lenta, a distração cotidiana, a comodidade moderna, a substituição paulatina do essencial pelo útil.
Não é que se perca de repente; é que se dilui sem ruído. Uma porta que fica entreaberta, uma pequena concessão, um descuido inocente, e quando percebemos já não lembramos por que fazíamos o que fazíamos.
Preparar-nos conscientemente é conhecer, não repetir.
Preparar-nos dolorosamente é renunciar, não aparecer.
Preparar-nos sacrificialmente é guardar, não exibir.
A tradição que recebemos não nos pertence: ela nos atravessa.
Não é propriedade de uma diocese nem modismo de uma época; é sopro que vem do deserto, das catacumbas, dos Pais e Mães que sabiam que a fé se protege com a vida inteira, não com discursos.
A verdadeira tradição não é nostalgia. É precisão. É lucidez. É obediência inteligente.
E se dois mil anos foram capazes de conservar uma lâmpada acesa em meio a impérios, perseguições, divisões, cruzadas, exílios, línguas e migrações, não podemos agora permitir que se apague por distração, por aparência ou pela tibieza polida daqueles que já não sentem o peso de receber algo santo.
Porque essa tradição pura e diáfana não vem de nós; vem para nós.
Vem atravessando os séculos não para recolher-se em minorias orgulhosas, mas para nos resgatar a todos: Oriente e Ocidente, rito e rito, monge e leigo, Jerusalém e Roma, altar e rua.
E salvaguardá-la —conscienciosamente, conscientemente, dolorosamente e sacrificialmente— será sempre mais difícil do que gritar consignas de facção. Porque o silêncio que conserva é mais árduo do que o barulho que divide."
Comentários
Postar um comentário
Se algo tocou seu coração, partilhe. A palavra é encontro